sábado, maio 05, 2007

Comprimidos em excesso

Encaminhar alunos ''com dificuldades'' aos consultórios médicos é cada vez mais comum, assim como o uso abusivo de remédios dentro e fora da escola. Tudo porque ainda há quem acredite que a criança que não aprende é doente

Roberta Bencini

Ao assumir a Secretaria de Educação do Distrito Federal, há quatro meses,Maria Helena Guimarães de Castro sabia que teria de combater os altos índices de repetência - 20% no Ensino Fundamental.Ela reuniu uma equipe de técnicos e pedagogos para investigar as causas dessa tragédia e ficou chocada com algumas justificativas. No lugar de avaliações pedagógicas, recebeu fichas clínicas. Grande parte das crianças é acusada pelos próprios professores de ser incapaz de aprender. "Só pode ser mais uma forma de exclusão", indigna- se Maria Helena. Não se trata de ignorar as doenças, de acordo com ela, mas de expor (e discutir) uma espécie de tradição nas salas de aula: encaminhar os estudantes "difíceis" para os consultórios médicos.

Levantamento realizado em 2006 pelo Instituto de Saúde, de São Paulo, mostrou que mais de 50% dos encaminhamentos que chegam à rede pública de saúde são, na verdade, reclamações de dificuldade de aprendizagem. "Essa questão deve ser resolvida na escola, não em consultórios e hospitais", afirma Sabrina Gasparetti Braga, psicóloga responsável pela pesquisa.

Há pelo menos duas décadas, a professora Cecília Collares e a pediatra Maria Aparecida Affonso Moysés, ambas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), afirmam que professores e diretores adoram atribuir o fracasso escolar a questões de saúde."Nas décadas de 1970 e 80, era moda culpar a desnutrição e os distúrbios neurológicos pelos baixos índices de desempenho. Agora, esse preconceito ganhou novo verniz e passou a ser chamado de dislexia, transtorno de déficit de atenção e outras enfermidades", afirma Maria Aparecida." O estigma de ser tachado de incapaz é cruel e paralisa uma criança para o resto da vida. A culpa do fracasso escolar não pode ser mais atribuída a ela", completa Cecília.

Nos Estados Unidos, pesquisa realizada pelo jornal The New York Times revelou que em 2006 cerca de 1,6 milhão de crianças e adolescentes tomaram pelo menos duas drogas psiquiátricas combinadas. Desse total, quase 300 mil tinham menos de 10 anos! O mesmo jornal publicou em abril um estudo que denuncia a existência de milhares de diagnósticos errados de depressão na população americana e, conseqüentemente, o uso indevido de medicação. No Brasil, a indicação de remédios para crianças que apresentam "problemas" na escola também é muito grande."Há casos relatados de crianças menores de 5 anos que estão tomando anfetaminas", afirma a psicopedagoga Maria Cristina Natel, de São Paulo.

Muitos médicos argumentam que a facilidade de acesso aos remédios se explica porque a medicina está evoluindo e consegue detectar novos transtornos - todos eles típicos da infância e da adolescência e agravados pelo ritmo frenético da vida atual."A ciência avançou, mas só uma pequena parcela da população tem acesso a tratamentos", afirma o psiquiatra Pedro Mattos, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).Para entender melhor a importância de saber interpretar corretamente o comportamento dos alunos, assim como as diferenças de desempenho de cada um, NOVA ESCOLA ouviu especialistas e responde, a seguir, a dez perguntas sobre o tema.

Vendas crescentes

A comercialização do metilfenidato, uma substância presente nos principais remédios para tratamento de déficit de atenção e hiperatividade, aumenta cada vez mais

INFOGRÁFICO RUBENS PAIVA

Fontes: * Instituto Suíço de Pesquisa de Medicamentos / **Agência Nacional de Vigilância Sanitária

1. Como distinguir uma inquietude natural de um transtorno psíquico?

Na infância, todos gostam de brincar, correr, pular, gritar. Alguns também xingam, fazem birra, não respeitam as pessoas e são indisciplinados.Ainda que não desejáveis, esses comportamentos são normais. O limite entre a normalidade e a doença está na freqüência dessas atitudes. É preciso observar e acompanhar a vida do estudante por pelo menos seis meses para fazer um diagnóstico. Fatos traumáticos, como a separação dos pais ou a morte de um ente querido, podem gerar mudanças importantes, ainda que temporárias. O transtorno só se manifesta mesmo quando esse hábito passa a atrapalhar os relacionamentos e o desenvolvimento escolar. Só um profissional de saúde tem condições de fazer essa avaliação.

2. Quem precisa de remédio? Como eles agem no cérebro?

Muitas crianças têm dificuldade de aprendizagem, mas pouquíssimas têm déficit de aprendizagem, uma síndrome que não precisa necessariamente do uso de medicamentos.Nos casos mais graves, as anfetaminas são os remédios mais recomendados para diminuir a falta de atenção e a agitação (veja o infográfico abaixo).As anfetaminas agem em uma área muito delicada, o sistema nervoso central, e de maneira semelhante à cocaína, aumentam a atividade cerebral. Após a estimulação, a produção dos neurotransmissores cai e a sensação de bem-estar vai embora. "O organismo cobra a conta pelo gasto excessivo e fora do normal dessas substâncias", explica o neurologista Vicente José Assêncio-Ferreira, da Universidade de Taubaté.

3. Os medicamentos estimulantes podem viciar?

Sim. Alguns médicos afirmam que as chances são mínimas e estão relacionadas ao uso indevido dos medicamentos. Outros acreditam que os estudos sobre o efeito deles ainda não são conclusivos e que é comum encontrar jovens que caem em depressão com a suspensão do tratamento. O metilfenidato - um dos estimulantes mais receitados nos consultórios, com vários nomes comerciais, sendo Ritalina o mais conhecido - tem, como todo medicamento, efeitos colaterais. Os mais comuns são dor de cabeça, dores abdominais, insônia, falta de apetite, pele opaca e prostração. Por isso, toda família tem a obrigação de avisar a escola caso a criança tome qualquer tipo de estimulante ou antidepressivo para que o professor possa acompanhar corretamente o tratamento. E você deve observar muito seu aluno antes de achar que os remédios são a solução para o menino que não se comporta do jeito esperado.

4. Algum remédio é capaz de melhorar o desempenho escolar?

Os remédios não são a salvação para todos os males da vida moderna. E não há medicamento que possa substituir um bom professor. Em casos extremos, como autismo, transtorno bipolar, dislexia, depressão e outros transtornos, os remédios melhoram a capacidade de manter a atenção, o que se traduz em ganhos no rendimento escolar. "O problema é que todos os alunos que fogem a um determinado padrão de normalidade estão sendo medicados para não incomodar e atender à expectativa de pais e professores", afirma Vicente José Assêncio-Ferreira.

5. Criança que não pára quieta é hiperativa? Como lidar com ela?

Ana Maria Fernandes, Juazeiro, BA

Não, nem todos os agitados têm algum tipo de doença. Eles podem ser assim mesmo ou estar passando por algum momento difícil. Os principais sintomas da hiperatividade são esquecer objetos com muita freqüência, falar excessivamente, distrair-se com facilidade e ter extrema dificuldade de organização.

Muitas vezes, o problema é associado ao transtorno de déficit de atenção (e, nesse caso, é conhecido como TDAH). No dia-a-dia da sala de aula, cabe a você, professor, contemplar todos, inclusive os muito agitados. Especialistas sugerem colocar os mais ativos perto de você, dar a eles constantes estímulos e atividades diferenciadas capazes de explorar todos os sentidos e nunca promover tarefas extremamente longas. Outros conselhos úteis são avaliar e revisar as atividades propostas para essas crianças com mais freqüência, fixar-se mais nas intervenções pedagógicas necessárias ao desenvolvimento cognitivo (e menos nas questões de comportamento) e dar mais retorno a elas sobre suas conquistas.

6. A variação de humor pode ser considerada uma doença?

Todos os que passam por períodos de estresse intenso podem apresentar mudanças de comportamento, como a variação de humor. Ela é percebida com mais freqüência entre os adolescentes.Mas isso não torna imperativo tratar a questão com remédios. É comum imaginar que eles sofrem de transtorno bipolar. Nesse caso, a doença vem sempre associada a outros sintomas, como a manias e à alternância de momentos de depressão e euforia.

7. Quais são os sintomas do TDA? Ele tem cura?

O principal sintoma é a falta de atenção.A pessoa parece não ouvir ninguém e fica excessivamente inquieta e impulsiva. "O cérebro recebe todos os estímulos do ambiente, mas é incapaz de focar em apenas um", explica Luiz Celso Vilanova, da Universidade Federal de São Paulo. Por ser uma síndrome de origem genética, se estende por toda a vida e, portanto, não tem cura.Na maioria dos casos, o atendimento psicológico e o apoio da família e da escola são suficientes para atender às necessidades dos que sofrem de TDA.

8. Crianças na pré-escola podem apresentar TDAH?

Sim. O transtorno de déficit de atenção e a hiperatividade são distúrbios que podem surgir nos primeiros anos de vida, mas a maioria dos diagnósticos só é feita a partir dos 7 anos.Nunca é demais lembrar que cada criança é única e seu desenvolvimento depende dos estímulos recebidos. Pais agitados geralmente têm filhos agitados, assim como os mais imaginativos se desconcentram com mais facilidade - e nem por isso são doentes.

9. É verdade que os hiperativos são superdotados?

Não há nenhuma ligação entre hiperatividade e superdotação. Só que os que estão muito acima (ou abaixo) da média da classe costumam se desinteressar pelas atividades propostas. E isso, é claro, só pode ser resolvido com tarefas mais instigantes. Os superdotados costumam acabar as tarefas antes da turma e se dispersam ou incomodam os colegas que ainda não terminaram a lição (comportamento que muitos confundem com hiperatividade).

10. Como são feitos os diagnósticos de déficit de aprendizagem?

A maioria dos diagnósticos é feita com base nos sintomas clínicos relatados por professores e pais e interpretados por um pediatra, neurologista, psiquiatra ou psicólogo. "Quase sempre, essa análise diagnóstica é subjetiva e superficial.Muitos são encaminhados ao serviço de saúde já com a intenção de achar uma doença que justifique dificuldade de aprendizagem e a falta de autoridade e paciência dos pais", afirma Maria Aparecida Affonso Moysés, da Unicamp. Estudo realizado pela Universidade Federal de Uberlândia mostra que os psicólogos que atuam nos ambulatórios públicos não investigam as causas do problema de maneira correta."Parte-se do princípio de que a culpa é da criança e não da escola. E assim não se analisa o relacionamento do aluno com os colegas e professores", diz Viviane Marçal, pesquisadora responsável pelo trabalho.

Atenção artificial

Após a ingestão, o medicamento atua no lóbulo frontal e no tronco cerebral, áreas responsáveis pela capacidade de motivação e concentração. Assim, a criança fica mais ligada na aula

INFOGRÁFICO RUBENS PAIVA / CONSULTORIA LUIZ IRIA
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DA EUFORIA À DEPRESSÃO
Quando acaba o efeito do remédio, há queda na produção dos neurotransmissores e, com isso, a criança pode sentir depressão ou ficar prostrada. Esse efeito colateral acontece após cada dose da medicação ou no fim de um tratamento.

Respeito aos limites

MARCELO ALMEIDA
Objetivo comum: Gabriela conta com o apoio da mãe, Cristina (à esq.), e da diretora da escola, Mariza, para viver sem remédios

Gabriela Mukai, 11 anos, era uma potencial usuária de medicamentos como a Ritalina. Sempre foi considerada desatenta e lenta, faz psicoterapia desde pequena e, aos 9 anos, recebeu o diagnóstico de |TDAH e dislexia. Mas a família, a escola e a psicóloga encontraram uma alternativa mais adequada ao caso dela: atenção, respeito aos limites e acompanhamento constante. "Fiquei perdida quando um neurologista receitou remédio para minha filha. Hoje tenho consciência de que acertei em procurar outro caminho", conta a mãe, Maria Cristina Montes Mukai. Apesar do estigma, Gabriela nunca foi reprovada, acompanha a turma - no seu ritmo - e pratica esportes para gastar energia. Boa parte do sucesso do tratamento se deve à equipe do Colégio Integral, em Curitiba, onde a menina estuda há dois anos. A direção apoiou totalmente a opção da família em não medicá-la e atua junto com a psicopedagoga da aluna, Isabel Parolin. "Não há remédio que substitua um bom professor. Quem não entende que o mundo está agitado e que as crianças são o reflexo desse ritmo opta pela medicação", diz Isabel. Cursando a 6a série, Gabriela conta com a atenção dos professores e pode realizar tarefas e provas com mais tempo do que o restante da turma. "Sempre busco informações sobre as doenças para que a escola se adapte às necessidades dos alunos e não o contrário", afirma a diretora, Mariza Pan.



Revista Nova Escola

Edição 202 maio/2007

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