segunda-feira, dezembro 25, 2006

Eva Furnari, arte sem preconceito

Em premiada carreira de mais de 50 livros, autora valoriza o simbólico e a diversidade no comportamento

Beth Néspoli

Autora de clássicos da dramaturgia infantil como Pluft, o Fantasminha, Maria Clara Machado (1921-2001), em entrevista ao Estado, observou que, embora prestigiada por sua obra, seu nome jamais era citado numa lista de grandes dramaturgos. 'Não tenho dúvidas que isso se dá pelo fato de eu escrever para crianças.' A queixa procede. Mas se ainda resiste a idéia de que literatura infantil é arte menor, escritoras como Eva Furnari estão em plena atividade para quebrar de vez esse preconceito.

Autora de mais de 50 livros, ela tem no currículo prêmios importantes, entre eles seis Jabutis - por Truks, 1991; A Bruxa Zelda e os 80 Docinhos, 1996; Anjinho, 1998; Circo da Lua, 2004; e dois, ilustração e texto, por Cacoete, 2006 -, oito indicações de 'altamente recomendável' pela Federação Nacional do Livro para Infância e Juventude e ainda o APCA pelo conjunto da obra.

Basta ler um livro como Nós - sobre uma menina que descobre perplexa a formação de nó no seu dedo do pé, depois nas pernas, mais tarde no pescoço, a cada vez que ela engole o choro - para perceber que Eva não foge de temas difíceis. Cacoete, por exemplo, tem temática complexa: a dificuldade de acompanhar as velozes transformações do mundo contemporâneo. A principal especificidade, e qualidade, desta literatura, está na forma lúdica como trata tais temas.

A protagonista de Nós, por exemplo, vive cercada de borboletas coloridas e isso atrai a gozação dos 'normais' de sua cidade, onde as bicicletas voam e as pessoas nascem em repolhos. No livro Umbigo Indiscreto, os personagens nem são gente, são os bolofofos; na terra deles, 'ter orelha de abano é o máximo da beleza' e as emoções se revelam pela cor do umbigo. Padrões caducos de comportamento são o tema de Abaixo das Canelas, cuja história se passa numa cidade onde as pessoas andam até peladas - e a ilustrações disso são ótimas -, porém jamais descalças. Elas perderam a memória do motivo que originou tal padrão de conduta. Diante de tantas histórias e personagens, tantos livros, entre eles algumas obras-primas, o Estado foi procurar a autora para uma conversa.

Eva Furnari mora numa bonita casa em Santo Amaro. Na varanda, além de seu gato, há os dos vizinhos que estão sempre por ali em busca de um afago, mesmo os mais bagunceiros, que derrubam os vasos de plantas da janela, cena presenciada pela reportagem do Estado. A passos de sua casa, nos fundos da casa de uma vizinha, Eva instalou o seu ateliê, cujas janelas se abrem para um singelo jardim. Nascida em Roma, seus pais migraram para o Brasil quando ela tinha dois anos de idade. Formou-se em arquitetura na USP e começou escrever para crianças em 1980, inicialmente em livros sem texto, contando histórias através das imagens que criava. Entre esses, uma personagem que ficou famosa até em tirinhas de jornal, A Bruxinha Atrapalhada. Aos poucos as palavras foram surgindo e atualmente ilustrações e palavras têm igual peso em sua literatura.

Começamos por debater sobre temas recorrentes em sua obra, como a valorização da diversidade e os seus inusitados finais felizes. Por exemplo, tudo acaba bem para a menina de Nós, mas ela também descobre, na nova cidade em que vai viver, que algum nozinho discreto quase todos têm. 'Há por aí um modelo de perfeição e a gente sofre muito por não se encaixar nesse modelão', argumenta Eva. 'Nem Deus criou a perfeição. Se a gente for pensar, a natureza é uma experimentação só, há milhares de anos (risos). Se fomos criados à semelhança de Deus, então devemos levar em conta que ele experimentou tanto para chegar numa orquídea... Quantos dinossauros extinguiu para chegar num gato?' Nós, Umbigo Indiscreto, os livros da Coleção Bobos da Corte, entre outros, tratam desse assunto: aceitação da imperfeição.

Seja qual for a temática abordada, Eva considera fundamental tratá-la no campo do simbólico. Nada da história de uma garotinha discriminada por ser gorda, feia, ou manca. Nada de lição de moral. 'Acho importante tirar as questões do contexto comum. Gosto da trajetória clássica de quem se depara com obstáculos e os supera. Mas é preciso ter conexão com o imaginário', diz. 'Já me aconteceu de criar histórias apenas racionalmente, mas o resultado é lixo, eu rejeito', diz.

Como há um bom mercado para o livro infantil, certamente 'produtos' criados com a 'intenção' do didatismo não faltam. 'O cérebro da gente é dividido em três partes: a intuitiva, mais antiga, igualzinha à do jacaré; a racional e a emocional. Se você faz um desenho apenas com a parte racional o traço sai mecânico, sem vitalidade, sem alma. Por exemplo, cada sorriso tem uma nuance diferente, não existem dois sorrisos iguais. Mas para perceber isso - e desenhar nuances - é preciso criar conectado com o inconsciente e alquimizar essas partes: imaginação, intuição, sensibilidade artística e raciocínio lógico estruturado. Existem histórias infantis aí que não têm história nenhuma, são livros de auto-ajuda para crianças.'

Não que ela negue a importância da arte como instrumento de formação da criança. 'A literatura é um meio fantástico de ensinar alguma coisa, de transmitir valores. Claro que o leitura de livros não dispensa os conselhos, a conversa com pais e educadores. Mas se a literatura é boa, genuína, se tem humor, emoção, se o personagem existe, o autor vai fundo, então sua leitura envolve emoção, torna-se experiência e provoca transformação interna. O aprendizado de valores feito assim é profundo, porque une ética, estética e emoção.'

Não é difícil perceber os autores que alimentam o imaginário da autora. Num mural de seu ateliê, além de desenhos por ela assinados, estão imagens do psicanalista Carl Jung, do escritor Hans Christian Andersen e do antropólogo Mircea Eliade, autor do livro O Mito do Eterno Retorno (Editora Mercuryo). Além de escrever e desenhar - duas ações de um processo único de criação - Eva dá palestras em escolas. Entre outras coisas, aborda os problemas enfrentados por pais e educadores com as mudanças da sociedade.

'Antigamente, os pais diziam que a gente não podia colocar os cotovelos na mesa e a gente aceitava. De onde vem essa regra? As famílias eram grandes, as mesas pequenas. A regra tinha significação profunda: respeito com o vizinho. Hoje as famílias são pequenas, crianças comem diante da TV. E essa regra está desconectada de seu princípio ético', argumenta. Como se atualizar regras? 'Essa é uma pergunta que têm que pais e educadores têm de fazer o tempo todo. Quais são as novas regras para os mesmos princípios éticos? Os pais de hoje estão com uma bomba complicada nas mãos. É preciso dar limites, mas num mundo em que o indivíduo, que estava muito oprimido, foi liberado pela psicologia, pela liberação de mulher, pela liberação sexual. A gente está reelaborando. Mas não estamos no caos, estamos em processo, a caminho de construir algo novo.

Extraído de
O Estado de São Paulo
Caderno 2

25 de dezembro de 2.006

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