Portador da síndrome de Asperger, que afeta a capacidade de sentir, o norte-americano John Elder Robison fala do seu livro Olhe nos Meus Olhos
Antonio Gonçalves Filho
A síndrome é relativamente comum: uma em 150 pessoas tem Asperger ou outro transtorno autista, o que, nos Estados Unidos, corresponderia a 2 milhões de almas. Uma delas pertence a um homem que ficou famoso após seu irmão, Augusten Burroughs, publicar um best seller que virou filme, Correndo com Tesouras (Ediouro, 2007, R$ 34,90). Animado com a repercussão da história de sua família disfuncional, John Elder Robison resolveu contar a própria versão dela em Olhe nos Meus Olhos, também transformado em best seller nos EUA e agora lançado no Brasil pela Editora Larousse (tradução de Júlio de Andrade Filho e Clene Soares, 256 págs., R$ 19,90).
De Massachusetts, onde mora com a mulher e o filho, Robison concedeu por telefone uma entrevista ao Estado, revelando as razões que o levaram a escrever o livro após assistir ao filme de Ryan Murphy. Nele, seu irmão gay Augusten (que assina o prefácio de seu livro) é entregue aos 12 anos à família do excêntrico psiquiatra que cuida da mãe de ambos, Deirdre, uma poetisa bissexual e depressiva que enlouquece quando vai viver só num hotel, após o divórcio. Separado dela, o marido, um professor alcoólatra, passa a espancar ainda mais o filho mais velho - justamente o autor de Olhe nos Meus Olhos. O título vem da frase que era repetida inutilmente pelo pai bêbado enquanto o garoto contemplava a pilha de garrafas vazias de vinho sob a mesa da cozinha.
Visto como psicótico pelos pais e os amiguinhos da escola, John Elder cresceu tímido e introvertido, certo de que viraria um assassino serial por não olhar as pessoas nos olhos ou não conseguir se emocionar diante da tragédia alheia. Até ser reconhecida pela Organização Mundial de Saúde como uma espécie leve de autismo, em 1984, a síndrome de Asperger era diagnosticada como doença mental. Não é bem assim. Há quem aposte que Einstein e o cineasta Stanley Kubrick sofriam da mesma síndrome, cujos portadores são sempre pessoas com uma inteligência acima da média mas incapazes de manifestar emoções.
A despeito das limitações que a síndrome impõe a seus portadores, ela não impediu Robison de ser bem-sucedido na vida profissional. Os ''aspergers'' têm uma habilidade incomum para lidar com máquinas e computadores. Robison diz, brincando, que eles pertencem à raça do doutor Spock, o alienígena de Star Trek, meio humano, meio marciano. Foi como uma espécie de professor Pardal que, reparando os equipamentos dos músicos de sua cidade, conheceu Ace, o guitarrista da banda de rock Kiss, que o convidou para cuidar dos efeitos pirotécnicos - sonoros e visuais - de seus shows. Robison cansou de simular os incêndios da guitarra de Ace. Resolveu levar uma vida pacata. Hoje restaura carros antigos em Amherst, Massachussets, e cuida do filho, que, desconfia, é também um ''asperger''.
Há muitos traços positivos na síndrome de Asperger, mas há também os negativos. Quais são eles?
Pessoas com a síndrome da Asperger são normalmente vistas como sociopatas pela dificuldade que têm de expressar o que sentem ou não esboçar reações diante do que os outros julgam ser algo excepcional. Simplesmente não tenho total controle quando estou conversando com alguém, pois outros estímulos podem distrair minha atenção (o que deve ter acontecido durante a entrevista ao telefone, pois ele preferiu sair do escritório para falar com o repórter do celular no carro). Acho que temos uma cabeça mais voltada para o cálculo científico, uma habilidade para consertar coisas ou, como dizem, uma estranha empatia com máquinas. Eu simplesmente adoro restaurar carros antigos. É como se eu conseguisse entrar no coração dessas máquinas. Por outro lado, sofremos com o preconceito por conta de nossa dificuldade de interagir de acordo com as regras sociais. Escrevi o livro justamente para ajudar as pessoas a entender a síndrome.
Ou para que as pessoas não falem mais que você se parece com o doutor Spock, de Star Trek. Você diria que a síndrome de Asperger é uma disfunção tipicamente contemporânea, uma vez que vivemos numa era essencialmente racional e pouco propensa a emoções?
Não sei se a era da informática, caracterizada pelo racionalismo, tem algo a ver com o crescimento de portadores da síndrome. Posso falar por mim, que tenho uma habilidade excepcional para lidar com sistemas mecânicos e eletrônicos, a ponto de ter desenvolvido jogos para um fabricante de brinquedos e aparelhos de som para a companhia do grupo Pink Floyd. Não importa o tempo em que vivemos, seremos sempre incapazes de agir conforme desejam as outras pessoas. Cansei de ouvir na adolescência que ninguém confia em quem não olha os outros nos olhos. Isso não significa nada. Numa época dominada por computadores, esse virou o comportamento padrão. E nós, os ''aspergers'', temos um talento incomum para lidar com eles.
Você conta que viveu a adolescência entre canivetes e outras armas, o que faz com que a sociedade desconfie de pessoas com síndromes como a sua, classificando-as de psicopatas. Isso lhe incomoda?
Eu carregava canivetes para me defender das agressões que sofria por conta da síndrome, não para atacar ninguém. É um equívoco associar a síndrome à violência ou às tragédias registradas nas escolas dos EUA, onde alunos saem atirando uns contra os outros.
Você parece ter superado seu isolamento. O que mudou em sua vida nos últimos anos?
Sou outra pessoa nesses últimos anos. Quando você exercita a linguagem do corpo, forçando-se a prestar atenção nas pessoas que estão ao lado, começa a perceber o quanto era cego. Eu andava como um robô desajeitado, incapaz de responder a qualquer estímulo facial ou mesmo sorrir. Quanto mais cedo os pais descobrirem que a criança é uma ''asperger'', melhor para ela, pois muitos não conseguem nem viver sozinhos nem descobrir sua vocação profissional, porque não se trata de uma doença, mas de uma forma de estar no mundo.
Médicos estão recorrendo à energia magnética para cuidar de portadores da síndrome de Asperger. Isso funciona?
Alguns estudos têm demonstrado que sim, que a energia magnética pode nos ajudar, mas acho que o principal é uma disposição interna para mudar. Minha habilidade social era pequena antigamente. Aprendi a lidar com ela aos trancos e acho que já posso andar por conta própria. Os ''aspergers'' têm enorme poder de concentração. É só não discriminá-los como fazem nas escolas, celeiros de regras que mantêm as crianças condicionadas a seguir normas e segregar os que são diferentes. Isso, sim, é doença.
Estadão
01 de maio de 2.008
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