Marcelo Abreu
Março de 1990, Hospital Santa Helena. Nascia Gabriel. O primeiro filho do contador carioca Geraldo de Sousa e da poetisa e servidora pública alagoana Isolda Marinho. O bebê veio grande, forte, sadio. Pesou mais de 4kg. O médico brincou com a mãe: “Esse menino não podia sair por baixo mesmo”. A família comemorou. O tempo passou. Gabriel crescia como qualquer outra criança. Aos 6 anos, na pré-escola, começou a se interessar por aviões. Desenhava coisas inacreditáveis. A professora um dia chamou a mãe e lhe disse: “Seu filho só pensa em avião”.
Gabriel planeja lançar mais dois e se aventurar em roteiros de cinema
Isolda achou que aquilo era apenas um gosto do menino, coisa de criança. Gabriel, a cada dia, se aperfeiçoava mais nos desenhos. “O que me agradava era a parte estética das aeronaves. Não queria saber da mecânica, de nada disso”, ele diz. Vieram as coleções de revistas sobre o assunto. Gabriel começou a criar historinhas. Criava companhias, rotas imaginárias. Um dia, ele esqueceu os aviões. No primário, já com 9 anos, o foco eram times de futebol. Inventava, por meio de desenhos, uniformes e campeonatos. Depois, passou a se interessar por países. Pensava nas suas moedas, imaginava hinos. Criava uma vida de mentirinha dentro de sua imaginação sem limites.
Aos 10 anos, Gabriel sentiu medo. Estouro de balão lhe deixava angustiado. Qualquer ameaça de chuva, ele se escondia debaixo da cama. Era como se protegia dos trovões. Uma irmã psicóloga de Isolda lhe chamou num canto e lhe disse, sem rodeios: “Minha irmã, o comportamento do Gabriel não é normal. Procura um especialista para que ele seja examinado”. Isolda não viu nada de errado com o filho. “Pensei que aquilo seria passageiro, que passaria”, fala a mãe.
O tempo passou. Aos 13 anos, na 7ª série, no Colégio Marista, Gabriel sentiu uma tristeza infinda. Só de pensar em ir para a escola lhe dava dor de barriga. Na sala de aula, isolava-se cada vez mais. A psicóloga chamou a mãe. E lhe disse o que Isolda nunca mais esqueceria: “Não é manha, nem capricho do seu filho. Ele tá pedindo socorro”. Começou, aqui, a jornada da família pela vida plena e saudável de Gabriel.
Romaria a consultórios de psicólogos. Psiquiatra. E um laudo, para sempre tatuado na memória daqueles pais: Gabriel tinha Síndrome de Asperger, um espectro de autismo menos comprometedor. Isolda nunca tinha ouvido falar naquilo. O mundo, naquele dia, desabou sobre sua cabeça. “Comecei a me culpar, como meu filho viveria nesse mundo, por que aquilo tava acontecendo na minha família...”, lembra a mãe. Gabriel entrou numa depressão arrasadora. Isolou-se de todo mundo. Ficou quase dois meses longe da escola. Isolda procurou, na internet, saber mais sobre a tal síndrome. Virou “especialista” no assunto. Fez parte de grupos de discussões virtuais. Conheceu pessoas. Prometeu a ela mesma que curaria seu filho e o traria de volta à vida que a ele pertencia. A vida a que ele tinha direito de viver.
Gabriel fez terapia. Faz até hoje. Tomou medicação específica. Toma até hoje. E pratica atividade física acompanhado por um personal. Segue rigorosamente as recomendações do psiquiatra. No ensino médio, trocou de escola a cada ano. Sentia muita dificuldade em interagir com os colegas. “Isso me fazia sofrer muito”, admite ele, na sala do apartamento espaçoso e bem decorado na 207 Sul, onde mora com a família — pai, mãe e um irmão mais novo de 16 anos e guitarrista. Gabriel passou a ler.
Apesar da pouca idade, devorou livros de compreensão complicada para um adolescente. Conheceu George Orwell, Truman Capote, Gabriel García Márquez, Isabel Allende, Mario Vargas Llosa. Encantou-se por Clarice Lispector e descobriu Machado de Assis e sua Capitu, com “seus olhos oblíquos e dissimulados”. E pasmem: formou, com um grupo de garotos com os quais sentiu afinidade, uma banda de rock da pesada. Virou metaleiro e só vestia preto. Era o baixista da banda. “Fizemos apenas um show”, ele diz, admitindo que o grupo fazia mais barulho que música. Coisas da vida. A mãe agradece, às gargalhadas: “Ainda bem que essa fase passou. Rezei todo dia para ele parar de vestir aquelas roupas pretas”.
Faculdade
Aos 17 anos, mesmo com todas as dificuldades de relacionamento, o menino que se apaixonou pela literatura terminou o ensino médio. Começaria uma nova etapa de sua vida. Prestou vestibular para jornalismo, no UniCeub. Foi aprovado. Está no segundo semestre. Pergunto se ele será meu colega de profissão. Ele devolve, sem hesitar: “Quero ser escritor. Acredito no meu potencial e quero viver disso. O jornalismo será uma alavanca pra me levar ao meu objetivo”.
Ao mesmo tempo em que aprendia técnicas de introdução ao jornalismo, Gabriel escrevia sem parar. Varava madrugadas. Pensou numa história. Imaginou seus personagens e, de rascunho em rascunho no computador, nascia, depois de seis meses, seu primeiro livro: O mundo depois do fim — misto de ficção científica e romance psicológico, em que ele narra as aventuras de personagens de vidas complexas, abordando temas como amizade, ética e moral, aos olhos de um rapaz de 17 anos, intelectual e psicologicamente maduro para a idade.
O livro, com 188 páginas, foi aprovado no FAC (Fundo de Apoio à Arte e à Cultura, do GDF). Acabou de sair do forno e será lançado na próxima terça-feira. É a vitória de um menino que venceu a si mesmo. A luta de uma família diante de um diagnóstico que mudaria a vida de todos. Comovida, Isolda, aos 48 anos, desabafa: “Sinto um misto de alegria, emoção e orgulho em ver meu filho assim”. Gabriel intervém: “Isso é apenas uma amostra de que o melhor ainda tá vindo”. Isolda não se contém de felicidade: “Ouvir uma coisa dessa é uma maravilha”. Os dois se olham e riem. Há uma cumplicidade intransponível entre eles.
Pergunto se a síndrome, hoje, ainda o atrapalha em alguma coisa. Convicto, o são-paulino roxo, filho de pai flamenguista doente, responde: “Não dou mais muita bola para o que dizem. O que tenho não é uma doença. É um estilo de vida. E cada um vive de uma forma bem particular”. Planos? “Acabar o terceiro livro. O segundo já está pronto”, adianta ele. E uma revelação animadora: “Quero transformar meus livros em roteiro para cinema. É essa linguagem que gosto. As cenas dos meus livros são extremamente descritivas, com muitos detalhes”. Ultimamente, Gabriel se apaixonou pela sétima arte. “Adoro cinema nacional”, diz. E as namoradas? “Tive algumas paixões meio platônicas”, ele conta, meio envergonhado. Esse é Gabriel Marinho, um rapaz com Síndrome de Asperger. Um escritor que ainda vai dar muito o que falar.
Lançamento
O mundo depois do fim será autografado na próxima terça-feira, dia 12, às 20h, no Foyer da Sala Martins Pena, do Teatro Nacional. Preço do livro: R$ 25. Contatos com a mãe: isolda.sousa@camara.gov.br — 8153-8707 ou com Gabriel: gabriel_2112@yahoo.com.br — 8111-7622
Trechos do livro
...O relógio digital da esquina marcava seis da manhã. O sol começava a nascer no horizonte, anunciando o início do dia 18 de fevereiro de 2028. David começara a esmurrar a porta, a fim de acordar suas crias. Greg, a contragosto, foi o primeiro a dar sinal de vida. Levantou-se timidamente e postou-se em pé. Olhou para o espelho sujo na parede de seu alojamento e viu em si uma figura fragilizada e totalmente esguia; cabelos negros emaranhados iam até o ombro, rosto retangular, lábios curtos e rosados e uma pequena cicatriz perto do supercílio direito. Nunca se sentiu confortável ao se ver...
... Os pastos áridos foram se alargando à medida que a cidade se distanciava. A poeira estava cada vez mais impregnada no ar, entrando pelas frestas das janelas quebradas do vagão. Vacas e cavalos desnutridos pastavam, procurando grama fresca para se alimentarem. Havia muitos mortos ao relento, com as carcaças rodeadas por abutres. Greg continuava tentando encontrar um espaço para respirar, até mesmo para ver como raiava o dia...
Síndrome foi reconhecida em 1994
A Síndrome de Asperger (SA), transtorno de Asperger ou desordem de Asperger é uma síndrome de espectro autista, diferenciando-se do autismo clássico por não comportar nenhum atraso ou retardo global no desenvolvimento cognitivo ou da linguagem do indivíduo. Alguns cientistas a classificam como “autismo de alta funcionalidade”. É mais comum no sexo masculino. Quando adultos, muitos podem viver de forma comum, como qualquer outra pessoa que não possui a síndrome. Há indivíduos com Asperger que se tornaram professores universitários (como Vernon Smith, Prêmio Nobel de Economia, em 2002). O termo “Síndrome de Asperger” foi utilizado pela primeira vez por Lorna Wing, em 1981, num jornal médico, que pretendia dessa forma homenagear Hans Asperger, psiquiatra e pediatra austríaco cujo trabalho não foi reconhecido internacionalmente até a década de 1990.
A síndrome foi reconhecida pela primeira vez no Manual Diagnóstico e Estatístico de Desordens Mentais, na sua quarta edição, em 1994. Alguns sintomas da síndrome são: atraso na fala, mas com desenvolvimento fluente da linguagem verbal antes dos 5 anos; interesses restritos: escolhem um assunto de interesse, que pode ser seu único desejo por muito tempo. A atenção ao assunto escolhido existe em detrimento a assuntos sociais ou cotidianos. Memorização de grandes sequências como mapas de cidades ou cálculos matemáticos complexos. Ouvido musical absoluto. Interpretação literal, incapacidade para interpretar mentiras, metáforas, ironias, frases com duplo sentido, dificuldades no uso do olhar, expressões faciais, gestos e movimentos corporais como comunicação não verbal. Pensamento concreto. Dificuldade para entender e expressar emoções. Falta de autocensura: costumam falar tudo o que pensam. Sensibilidade exacerbada a determinados ruídos.
Alguns estudiosos afirmam que grandes personalidades da história possuíam fortes traços da (SA), como os físicos Isaac Newton e Albert Einstein, o compositor Mozart, os filósofos Sócrates e Wittgenstein, o naturalista Charles Darwin, o pintor renascentista Michelangelo, os cineastas Stanley Kubrick e Andy Warhol e o enxadrista Bobby Fischer, além de autores de diversas obras literárias.
45 graus
sexta-feira, junho 05, 2009
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