Crianças com altas habilidades no Brasil começam a ser identificadas com a ajuda das escolas, que se deparam com o desafio de estimulá-las de forma adequada
Carmen Guerreiro
O Brasil começa a dar passos mais firmes para identificar os seus alunos dotados de altas habilidades. Se em 2005 apenas mil desses estudantes estavam presentes nos registros do Ministério da Educação, depois do Censo Escolar 2009, esse número subiu para 5.186.
"Não é que apareceram novos alunos, mas eles passaram a ser reconhecidos em suas habilidades específicas", explica Denise Arantes, técnica do Centro de Apoio Pedagógico Especializado (Cape), da Secretaria de Estado da Educação de São Paulo. Para ela, os dados oficiais do MEC são subestimados porque trabalham com números reais e limitados, ou seja, cada criança e adolescente identificados com altas habilidades em uma escola do estado são computados nas estatísticas, processo que leva tempo para ser sistematizado.
Como saber, então, o quanto falhamos ao tentar identificar as pessoas com altas habilidades no Brasil, se não temos uma real noção da porcentagem média dessas pessoas no país e no mundo? Uma estatística amplamente divulgada e atribuída à Organização Mundial da Saúde (OMS) afirma que de 1% a 3% da população de uma nação tem algum tipo de alta habilidade, o que se traduziria em cerca de 2,5 milhões de estudantes brasileiros. A instituição, no entanto, nega a autoria da estimativa. "A OMS não recolhe informações sobre esse assunto", respondeu à reportagem uma porta-voz do Departamento de Informação em Saúde e Pesquisa e Estatísticas Gerais da organização.
Antes de estipular quantas pessoas com altas habilidades existem no Brasil, o país se concentra em um estágio inicial de ensinar os professores e famílias a identificar essa característica nos estudantes. O ponto de partida é, portanto, a pergunta: o que define um indivíduo com altas habilidades?
A cartilha "Um Olhar para as Altas Habilidades", ferramenta oficial do MEC adotada nas redes municipais, estaduais e federal, traz reflexões e orientações pedagógicas práticas na área. Segundo a publicação, "o talentoso/portador de altas habilidades é aquele indivíduo que, quando comparado à população geral, apresenta uma habilidade significativamente superior em alguma área do conhecimento, podendo se destacar em uma ou várias áreas". O ministério aponta, na publicação, 65 qualidades comuns observadas nessas pessoas, como a curiosidade extrema, a boa memória e concentração, a persistência, a alta capacidade de articulação de ideias, o vocabulário rico, o perfeccionismo, o senso de humor e a liderança (a lista completa de características está na cartilha, disponível para download gratuito no endereço cape.edunet.sp.gov.br.
A especialista Jane Chagas, doutora em processos de desenvolvimento humano e saúde, professora da Faculdade Teológica Batista de Brasília e consultora da Unesco, explica que o principal traço da personalidade desse grupo é o interesse fora do comum em determinados assuntos e o envolvimento durante longos períodos de tempo com apenas um tipo de tarefa. Independente disso, baseando-se no fato de que as qualidades apresentadas pelos "talentosos" não são uma regra e nem são exclusivas dessas pessoas, Gabriela Toscanini, gestora de projetos sociais da Associação Paulista para Altas Habilidades/Superdotação (APAHSD), afirma que "as características são sempre extremas. Por exemplo: ou eles são muito agitados e não conseguem se acalmar, ou são muito resguardados". O importante, segundo a especialista, é entender que as altas habilidades não são uma patologia, tampouco uma condição que transforma as crianças em super-heróis imunes ao erro, e sim uma capacidade individual de desenvolver-se de forma mais intensa em uma área.
Identificar um aluno com altas habilidades, no entanto, não depende apenas de o professor conhecer todas as características próprias a esse grupo. O principal, alerta Jane, é que o educador tenha informações que permitam, ao observar um comportamento diferente do esperado do estudante, levantar a possibilidade de que ele possa ter altas habilidades e conversar com os responsáveis. O diagnóstico, defende, deve ser feito por um profissional especializado.
O MEC aponta algumas formas para fazer essa identificação: a observação direta do comportamento do aluno, a avaliação do desempenho, o conhecimento das características do estudante e das pessoas com altas habilidades, a aplicação de questionários e testes, e a execução de entrevistas ou conversas prolongadas com a criança e sua família.
O processo de diagnóstico das altas habilidades é, na maioria das vezes, feito por psicopedagogos, mas hoje existem entidades especializadas no tema que oferecem testes de identificação e orientam as famílias e escolas. É o caso da APAHSD, uma das organizações mais renomadas no país que trata das altas habilidades sob o prisma da pedagogia, e não da medicina. A avaliação para identificar a capacidade acima da média é uma adaptação às inteligências múltiplas descritas pelo psicólogo americano Howard Gardner. Algumas delas coincidem com o original, outras não. As oito inteligências utilizadas pela APAHSD são: lógico/matemática, linguística, científica, sinestésica/corporal, artística, musical, pedagógica e de construção.
"Não é uma prova, porque não avaliamos o resultado, mas sim o processo, a forma como ela respondeu. A criança passa por atividades o dia todo com diferentes profissionais para observarmos como ela se desenvolve em todas as áreas", explica Gabriela. A avaliação, bem como todos os serviços da APAHSD, é cobrada para pessoas que podem arcar com o seu custo, mas gratuita para escolas e famílias sem condições financeiras.
A associação desenvolve projetos para estimular e desenvolver talentos desse grupo, usando terapias alternativas com música, ioga e arte, além de promover pesquisas e cursos de capacitação e formação de professores. Outra fonte de formação e informação são os Núcleos de Altas Habilidades/Superdotação (NAAH/S), unidades criadas pelo MEC em 2005 para orientar pais e formar professores das redes estaduais. "No curso para os educadores, falamos quem é esse aluno, como identificá-lo e como estimular o desenvolvimento do seu talento, então eles voltam para suas regiões e têm a tarefa de multiplicar esse conhecimento para outros professores", afirma Denise Arantes, do Cape.
As inteligências múltiplas
Tanto a APAHSD quanto o MEC trabalham hoje a questão das altas habilidades por meio do conceito de inteligências múltiplas de Gardner. "Pode haver alguém que tem habilidade musical acima da média, enquanto suas habilidades linguísticas e de matemática não acompanham o mesmo nível de execução", exemplifica Jane. "Uns vão ter inteligências mais desenvolvidas e aplicadas em um lado e no outro, não."
O psicólogo educacional americano Joseph Renzulli, outra base teórica amplamente utilizada pelas instituições e principal referência da cartilha do MEC, parte das inteligências múltiplas de Gardner e acrescenta que "as altas habilidades não nascem prontas em uma pessoa, precisam ser desenvolvidas". Ele defende que existem três condicionais das altas habilidades: o envolvimento com a tarefa, a criatividade e as habilidades gerais e específicas acima da média.
Em contraposição a essa análise mais subjetiva, cada vez mais os testes de QI (Quociente de Inteligência) perdem importância na identificação dos membros desse grupo de talentosos. "As altas habilidades têm alguma coisa a ver com QI, mas ele é um teste desenvolvido há muito tempo, quando ainda nem existia o conceito de inteligências múltiplas, por isso hoje é apenas complementar", afirma Gabriela. "O QI observa três aspectos básicos: memorização, raciocínio lógico e capacidade de abstração. São poucos os fatores avaliados, por isso existem pessoas com altas habilidades com QI alto e outras não."
A função do professor
Teorias à parte, o mais importante é não ignorar a capacidade de uma criança com altas habilidades, hoje enquadrada nas políticas públicas como aluno com necessidades especiais. "Ignorar esses potenciais, além de representar desperdício de talento, pode desestimular a formação do aluno na sala de aula comum. Sem esse atendimento, os alunos que se destacam não conseguem avançar em seu próprio ritmo devido aos colegas da turma que seguem mais lentamente. Muitas vezes, o superdotado fica entediado, se sente desmotivado e abandona as aulas", afirma Paulo Presser, diretor de Educação e Tecnologia do Senai-RS, que promoveu um ciclo de palestras sobre a identificação de alunos com altas habilidades para docentes e técnicos do Senai.
O método mais indicado pelo MEC para atender esses estudantes - e aplicado pelos NAAH/S - é o enriquecimento curricular, que tem como princípio o fato de que crianças nessa condição precisam ser constantemente estimuladas e desafiadas em suas altas habilidades para que possam desenvolver-se, mas ao mesmo tempo precisam da convivência com seus pares de idade.
"O enriquecimento significa que esse aluno frequenta uma turma regular e, no turno inverso, recebe atendimento individual de um professor especializado, que irá trabalhar com projetos específicos que o desafiem e atendam suas necessidades. Ao voltar para a sala de aula, o aluno suporta o conteúdo que considera superado por ter uma motivação, uma espécie de 'válvula de escape'", explica Presser. Dependendo do caso, porém, especialistas defendem a aceleração de série para a melhor adaptação do estudante.
Fonte: Revista Educação
quinta-feira, setembro 30, 2010
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