domingo, junho 29, 2008

Classe hospitalar dá injeção de ânimo

Fabiano Ormaneze / Agência Anhangüera

(29/06/2008) Pelos corredores do hospital, Júlio Della Corte carrega sua bandeja de "medicamentos". De jaleco branco, parecendo um médico, ele entra nos quartos da pediatria, fala com as crianças internadas e, em cada leito, distribui lições, livros, tintas, lápis de cor, papel e tarefas escolares. Karin Caprini também não demora.

Ela precisa ensinar as conjunções para um garoto que, se não estivesse doente, estaria aprendendo esse conteúdo na escola. Selma Favaretto corre para a Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Ela vai atender uma criança que, se não fosse por ela, estaria com os olhos fixos num procedimento doloroso pelo qual passa o paciente na cama ao lado. Júlio, Karin e Selma são professores, mas trabalham no Hospital Municipal Dr. Mário Gatti, em Campinas.

Os três são educadores de uma classe hospitalar, um direito da criança internada, garantido por lei. Mas, ao garantirem que a garotada não perca o ano letivo, também geram esperanças, permitem que outras preocupações, não apenas a doença, ocupem o dia ou simplesmente, no caso de pacientes que passam meses e até anos no hospital, possibilitam a percepção de que, fora do cotidiano de remédios, cirurgias e balões de oxigênio, existe uma outra vida, muito mais divertida e cheia de cores.

Cláudio Vinícius da Silva Santos, de 12 anos, ficou internado 38 dias por causa de uma infecção, após ter se ferido num dos pés com uma farpa. Ele está na 6 série e, semanalmente, a mãe dele, Angélica de Camargo, buscava as lições dele na escola. No hospital, o conteúdo era estudado pelos professores e depois ministrado numa sala especialmente preparada para o trabalho pedagógico, com desenhos nas paredes, material didático e livros, ou no próprio leito, conforme as condições e o desejo do menino.

"Se não fossem essas aulas, acho que eu ia reprovar e aí teria de estudar com outros meninos, que eu nem conheço direito", conta o garoto. Foi na cama do hospital que ele aprendeu, por exemplo, tudo o que sabe sobre as conjunções da língua portuguesa. Também teve tempo para aprimorar um talento: o desenho.

"Eu nem sabia que meu filho tinha essa habilidade. O tempo em que fiquei aqui com ele também se tornou mais fácil com a ajuda desses professores", afirma Angélica.

As salas hospitalares começaram a ser implantadas no Brasil há cerca de dez anos. Apesar disso, a primeira lei que obrigava as instituições de saúde a oferecer acompanhamento escolar às crianças internadas é de 1969, reforçada depois por outras resoluções e pela Política Nacional de Educação Especial, do Ministério da Educação (MEC), em 1995.

No Mário Gatti, primeiro hospital de Campinas a contar com esse trabalho, a classe hospitalar existe há dez anos. "No começo, encontramos muitas resistências da equipe médica. Hoje, todos já perceberam que nosso trabalho auxilia no tratamento. A recuperação é mais rápida", conta Corte.

Tanto que, no prontuário dos pacientes, já existe um espaço para a descrição das atividades pedagógicas, ao lado das informações dos médicos, enfermeiros, psicólogos e nutricionistas.

"Já aconteceu de eu desenvolver uma atividade com uma criança, ao lado de outra que os médicos tentavam ressuscitar depois de uma parada cardíaca. A paciente ficou tão envolvida com a lição e nem percebeu que, do outro lado do biombo, alguém corria perigo. Poupá-la, naquele instante, representou evitar o medo", conta Selma. Ela trabalha no Mário Gatti desde a implantação da classe hospitalar e atua principalmente na UTI.

Esse tipo de iniciativa é praticamente exclusiva dos hospitais públicos. Nos particulares, é raro haver pacientes que fiquem internados por longos períodos. Em Campinas, além da sala do Mário Gatti, que faz cerca de 600 atendimentos por mês, apenas o Centro Infantil Domingos Boldrini, especializado no tratamento do câncer infantil, tem um projeto parecido, há nove anos.

No Hospital Celso Pierro, da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas), um projeto já foi aprovado e a sala está em processo de implantação.

No Hospital de Clínicas, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o serviço não é oferecido. Mas a assessoria de imprensa informou que, quando crianças ficam internadas por períodos longos, o hospital aciona uma escola pública do distrito de Barão Geraldo, que, de acordo com a disponibilidade, envia docentes e atividades.

No recém-inaugurado Complexo Ouro Verde, na ala da pediatria, que ainda não está em funcionamento, espaços para as atividades pedagógicas foram planejados.

O educador que trabalha em hospitais precisa ter formação específica em educação especial e recebe treinamentos sobre doenças e condições psicossociais, além de estar sempre informado sobre o estado clínico dos pacientes.

Para alguns, esse é o único elo com o mundo externo

A professora Karen Caprini trabalha no Hospital Municipal Dr. Mário Gatti há sete anos. Desde então, se especializou no atendimento de casos complexos, mantidos em unidades de tratamento semi-intensivo. Em seu dia-a-dia, depara-se com histórias como a de uma garota que está internada desde que nasceu, há cinco anos, por causa de uma deficiência respiratória que a obriga manter-se num respirador artificial 24 horas por dia.

Para crianças nessa situação, uma professora pode significar o único contato com o mundo externo. "Com autorização dos médicos, vou trazendo frutas, animais e flores para o hospital. Coisas que essas crianças nunca viram", conta.

No caso dos pacientes que moram nos hospitais ou ficam internados durantes anos, a equipe pedagógica desenvolve um programa de aulas e conteúdos, aprovado pela Secretaria Municipal de Educação e de acordo com as características clínicas e cognitivas de cada paciente. Às vezes, o aprendizado se resume apenas a percepção da diferença entre o dia e a noite.

"Para uma criança que vive na UTI, sem luz natural, saber que a claridade é característica do dia e que a escuridão é sinônimo da noite, ainda que seja quando a luz da sala se apaga, tem o valor do conhecimento de um ano todo", explica Selma Favaretto, outra professora que trabalha no Mário Gatti.
Sala de aula se transforma em refúgio de esperança

A sala de aula da professora Luciana Assunção de Mello, no Centro Infantil Domingos Boldrini, se tornou uma espécie de refúgio. "Muitas mães já vieram chorar aqui pelo estado irreversível dos filhos. A sala já se tornou também o primeiro local em que a mãe passa depois de descobrir que o tratamento chegou ao fim. Sinto nosso trabalho como uma espécie de elo com o mundo externo", explica a professora, que trabalha no local há quatro anos.

Como o hospital recebe crianças do Brasil todo, Luciana precisa estar atenta às diferenças culturais e de currículo escolar, variável para cada região.

Para isso, entram em ação o trabalho de cerca de 20 voluntários, boa parte alunos de licenciaturas na Unicamp. "Uma vez, chegamos a trazer uma agrônoma para auxiliar uma aluna que vinha de Rondônia, com um conteúdo totalmente voltado à economia rural. A escola deve ser um direito da criança. Não garanti-lo é como dizer que o caso não tem solução e que a escola já se tornou desnecessária", explica Luciana.

Atuar numa classe hospitalar também exige dos professores conhecer o estado de saúde das crianças e as implicações de cada caso, o que transparece no vocabulário desses educadores, cheio de termos médicos. Por isso, diariamente, eles consultam prontuários e participam de reuniões com médicos e outros profissionais da área da saúde. "Com o tempo, a gente vai desmontando a idéia de que a pedagogia é uma extensão da sala de espera. Temos um compromisso com a qualidade de vida dos pacientes", afirma.

Monic Christina da Silva Teixeira, de 11 anos, é outra aluna da professora Luciana. Para ela, a sala de aula já se tornou um departamento obrigatório. Sempre que vai ao Boldrini, uma vez por semana, passa pelo médico, pela psicóloga e termina manipulando lápis de cor. "Eu só não fico triste de vir ao hospital porque sei que também vou poder brincar um pouco aqui", resume a garota, que há dois anos luta contra um tumor num músculo da face.

Universos

Vencidos preconceitos que antes consideravam o trabalho dos educadores uma atividade secundária e sem importância, a pedagogia no Boldrini também já entrou como rotina na triagem de todos os pacientes. A médica hematologista Vitória Pinheiro explica que os principais vínculos de uma criança na infância são a escola, a família e as brincadeiras.

O ambiente de um hospital será melhor se conseguir reproduzir esses universos. "A classe escolar funciona como um incentivo. A vida da criança, apesar de estar num hospital, continua. Isso melhora a auto-estima, o compromisso com o tratamento e o ambiente", comenta.

As experiências do Boldrini geraram um encontro de capacitação de educadores. Uma vez por ano, o hospital recebe cerca de 200 professores de todo o Brasil que assistem a palestras com médicos e pedagogos sobre as particularidades do trabalho docente em hospitais. O último foi realizado no início de junho.

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